um conto comprido, ou uma novela curta

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Henrique Carvalho Ghidetti

Não sei bem quando a vida começou a sumir de meus olhos, foi um fenômeno ao qual não prestei grande atenção até atropelar o cachorro, embora vários sintomas surgissem antes. Agora tento me lembrar, parece que a primeira evidência tive-a passando por uma praça que ficava no meu trajeto para o trabalho. Não sei nem se notei o fato logo na primeira vez, acho que não. Era uma pracinha modesta, de dimensões e pretensões poucas, o mesmo diga-se dos cuidados a ela dispensados, espremida entre edifícios e avenidas, um gramado todo falho, uns arbustos que nunca chegavam a árvores, uns velhos, umas crianças, uns gatos arredios disputando o espaço dos bancos desbotados e encardidos, muito quebrados e escassos. Muitas vezes, talvez todas, ao se passar por ali, sentia-se claro, gritante, o odor de urina velha, viam-se camisinhas e embalagens de seringas pelo chão. Ainda assim, aquele, com freqüência, era o único verde do meu dia, a única pausa no meu asfalto, concreto e vidro rotineiros. Não que eu ligasse muito para isso, eu não prestava grande atenção àquele pedacinho de decadência ao encontrá-lo diariamente, eu mal o olhava, e se antes de ele desaparecer tivessem me pedido para descrever meu caminho diário entre a casa e o trabalho, seria muito pouco provável que eu mencionasse a maltratada pracinha em meu relato. Ela é uma dessas presenças que mais se fazem notar pela ausência, pois só assim lembrei da mísera pracinha, quando deixei de vê-la, ou melhor, quando deixei de ver sua vida. Porque um dia ela sumiu, acreditem, meus olhos tornaram-se incapazes de ver as coisas vivas.

Trabalho numa grande indústria de alimentos, na qual ocupo um cargo de direção. Moro muito bem, tenho ótimos carros, visto as melhores roupas e quase não me sobra tempo para perceber nada disso. Essa é velha, eu sei, todo mundo já está mais que careca de conhecer a triste sina dos bem sucedidos, não fossem as toneladas de enlatados sobre o tema que os Estados Unidos despejam incessantemente em nossas cabeças. Não, não vou chover no molhado contando como negligenciei as pessoas e seus sentimentos para subir na vida, ou para descer, e quanto me doeu agir assim, até porque não doeu, pelo menos não mais que nem tanto quanto ser um zé-ninguém. Só estou revelando este traço da minha personalidade, o executivo que não se preocupa com nada além da sua carreira profissional, para compreenderem por que eu não posso precisar sequer minimamente o exato momento do início do problema.

O meu caso é como o daquelas doenças que primeiro se apresentam sob a forma de uma coceirinha insignificante, o sujeito nem se dá ao trabalho de olhar para a área afetada e vez por outra simplesmente fricciona a região com muito menos diligência do que teria se fosse arrancar uma meleca do nariz, afinal não passa de uma comichãozinha besta. E, de tanto repetir que aquilo é uma perebinha de somenos, seu portador passa a dedicar-lhe ainda menos atenção do que antes, na verdade tão pouca que há que confundi-la com o esquecimento. Ocorre que nesse meio tempo a perebinha, pelo contrário, não esqueceu de si própria, cultivou-se, nutriu-se da saúde e do vigor de seu hospedeiro, e se, sob o aspecto da quantidade, ela ainda quase não cresceu, entretanto, sob o aspecto da qualidade, ela se aprimorou admiravelmente, acumulou energia, melhorou sua irrigação sangüínea, assim ficando apta a absorver mais oxigênio, enraizou-se naquele seu quinhãozinho de carne e com muita previdência consolidou-se antes de se expandir. Agora sim, a modesta perebinha está pronta para crescer e assumir o seu verdadeiro papel no contexto orgânico. O cidadão em cujo corpo se operavam todas essas preliminares, por sua vez, vivia como se fosse imortal, aliás como nós todos, ou quase todos, vivemos, ele já nem lembrava mais de coçar sua perebinha, ou coçava-a sem nem mais saber o que estava fazendo, tão pouco os seus sentidos se voltavam para aquilo que o progresso do calombo, mesmo quando já bastante visível, não lhe despertava qualquer cuidado, a familiaridade entorpece a percepção. Aquela coisinha que coça já nem é mais tão coisinha assim, seu tamanho mais que triplicou, é quase o de um botão de paletó dos grandes, e da massa carnosa inclusive começa a gotejar mui discreta secreção purulenta, nada que chegue a assustar, aplicamos uns pozinhos, umas pomadinhas na coisa e vamos tocando o barco, no fim das contas aquela pústula, pensamos, faz parte da nossa personalidade, é e sempre será assim, pensamos. Só que a pústula não pára, o que pára, na verdade, vítima, já dissemos, do entorpecimento oriundo da familiaridade, é a nossa percepção, que só de tempos em tempos aceita sair do seu embotamento para ajustar-se aos novos fatos da sua realidade cotidiana, na qual vivemos tão imersos e da qual tão pouco queremos saber, o que de modo algum faz as coisas deixarem de acontecer. E assim, uma bela manhã, como que da noite para o dia, assim, acordamos com aquele tumor do tamanho de uma bola de basquete debaixo do braço, ou entre as pernas, ou onde queiram, vamos ao médico dizendo doutor isto nunca me aconteceu antes, ao que responderá enigmaticamente o esculápio, e provavelmente não acontecerá outra vez, fazemos promessas, fazemos cena, mas eis que desponta imponente a verdade, nós já não somos mais o que éramos, no lugar de tecidos sadios temos agora miríades de tumores em profusão. A natureza, essa víbora, nos traiu, e nós gostamos enquanto não doeu forte. O meu mal não parece ser dos que matam ou deformam, mas decerto é desses que vêm aos poucos.

Todos os dias eu deixava o carro no estacionamento e tinha que andar duas quadras e meia até o escritório, cujo prédio localiza-se numa parte do centro da cidade com acesso exclusivo para pedestres. Toda aquela região foi tombada como patrimônio histórico e artístico e se encontrava em processo de restauração. O meu lugar de trabalho, embora uma construção bastante velha, e apesar da desvantagem de não ter estacionamento próprio, é luxuoso, dispõe de todo conforto e está em perfeito estado de conservação, um imóvel muito valorizado num lugar da moda. Acreditava-se mesmo que, naquela obra de recuperação do centro, a prefeitura acabaria por dar um jeito na horrível pracinha, era o que se esperava, não se podia deixar tanto lixo próximo ao luxo. Eu guardava o carro no estacionamento e andava uns poucos metros até topar com aquele pedaço de abandono. Muitas vezes, quando irritado, eu olhava a pracinha e dela fazia o objeto de minha raiva, aquela gente rota e sem asseio, aquele cheiro, era ali, naquele arremedo de logradouro, que eu via a grande fonte das minhas contrariedades, aquele lugarzinho não tinha poder, não tinha influência, eu era livre para odiá-lo o quanto quisesse, ele não poderia fazer contra mim nada além do que já fazia. Também foi ali que os primeiros sinais do meu mal se fizeram notar. O verde da pracinha era pouco, como sabemos, mas a partir de um certo dia ele começou a tornar-se ainda mais raro, a vegetação foi sendo vencida pelo tom da terra até que tudo que restou foi um chão nu. Era a vida sumindo dos meu olhos, primeiro foram as formas mais simples, fungos, musgos, gramas, e eu não dei qualquer importância a isso, mesmo porque não podia perceber que o que mudava era eu, não o mundo, para mim o que acontecia era que o verde da cidade vinha diminuindo, algo tão normal, e não a minha aptidão para percebê-lo. Depois deixei de ver os arbustos e em seguida as árvores.

Repito, em meu habitat o verde é extremamente escasso, além do que eu nunca tive uma especial admiração pela natureza. Portanto, minha cegueira parcial, até aquela altura, não me trouxe embaraços notáveis, como esbarrar em árvores por não as ver. Enquanto a coisa se limitou às plantas, apenas uma vez assisti realmente surpreso a uma cena insólita, foi diante de uma floricultura. Eu saíra com uns amigos, fôramos a uma exposição de automóveis antigos e depois a um bar da moda, estávamos sem companhias femininas, podíamos comer, beber e falar sem preocupar-nos em impressionar acompanhantes casuais ou em sermos convenientes com namoradas, noivas ou esposas. Saímos bastante altos do bar, despedimo-nos entre gargalhadas e fomos cada um para o seu lado. Entrei em meu carro flutuando numa nuvem etílica e com uns vestígios de riso ainda a sacudirem-me vez por outra, só ao passar pelo caixa do estacionamento foi que me senti desligado do ambiente da roda de amigos, o ciclo do álcool avançou mais um passo, de eufórico tornei-me melancólico dentro do meu blindado alemão pelas ruas à meia-noite, liguei a música e procurei dirigir sem cometer grandes besteiras. Curioso que essa lembrança me venha só agora, acho que foi por causa da bebedeira, na manhã seguinte e ainda depois quase não dei importância ao assunto, era inexplicável, melhor esquecê-lo, mas agora, quando sei do meu verdadeiro problema, compreendo a realidade do que presenciei naquele início de madrugada. O tanque do meu carro estava quase vazio, esse é um péssimo hábito meu, que inclusive contraria todas as recomendações do meu consultor de segurança, mas eu, como muitos que conheço, detesto parar em postos de gasolina, isso me parece o supra-sumo da perda de tempo, normalmente deixo essa tarefa por conta de meus subordinados, mas nesse dia, por um acaso qualquer, esqueci de mandar levarem meu carro ao posto e por isso tive eu mesmo que fazê-lo. Enquanto a gasolina era colocada, desci e fui à loja de conveniência do posto, onde comprei um refrigerante que vim bebendo de volta ao carro, foi então que notei, ao lado da loja de conveniência, a floricultura, dessas que funcionam a noite toda. A química dos espíritos atuava em meu metabolismo, governava a minha mente, fez aflorar em mim a oneomania, como se eu fosse generoso, na verdade só queria aplacar meu remorso, que a melancolia etílica ampliava. Resolvi mandar flores para a minha namorada, que eu deixara plantada à minha espera para irmos juntos ao teatro naquela noite, só na última hora avisei-lhe da mudança unilateral nos meus planos. As flores diminuiriam seu aborrecimento, eu supunha.

Vocês devem estar pensando que cheguei em frente à floricultura e não vi nada, afinal eu mesmo disse que não podia mais ver as plantas. Devo-lhes mais uma explicação. Minha cegueira, naquele ponto, impedia-me de enxergar as espécies vegetais, é verdade, porém o que eu não via eram as espécies vegetais vivas, pois em nenhum momento fui privado da capacidade de enxergar defuntos. Então, o que testemunhei naquela floricultura não foi simplesmente um monte de vasos e baldes vazios, não, tudo que não fosse vivo, ou seja, neste caso particular, as flores que já tinham sido arrancadas dos pés, era-me visível. Havia sim uma boa quantidade de vasos apenas cheios de terra que na verdade deviam conter plantas vivas, e embora fosse esquisito tantos daqueles recipientes desocupados, deixando a loja com um certo ar de desolação, isso não bastava para causar-me estranheza, porque a maior parte da mercadoria ali exposta constituía-se de flores colhidas, mortas portanto, as quais eu via perfeitamente. O que me surpreendeu na floricultura foi a cena a que assisti lá dentro, pela vitrine. Duas mulheres, a vendedora e uma compradora, confabulavam tendo entre si um vaso, a compradora ia remexendo em sua bolsa até que encontrou um cartão de crédito, enquanto a vendedora, com o vaso sobre o balcão, cuidava de adorná-lo com aqueles laços e fitas que se usam nas floriculturas. Nada mais normal, dirão, duas pessoas realizando um ato de comércio perfeitamente lícito e usual, só que para mim, diante dos meus olhos, o objeto da transação era um vaso vazio, sem nada, apenas cheio de terra, que se estava enfeitando, olhando com carinho e pagando com cartão de crédito, provavelmente preparavam-no para presente. Acompanhei tudo parado do lado de fora da loja, esquecido do mundo em redor, quase deixando cair a lata de refrigerante que tinha na mão, e, quando a compradora saiu e se dirigiu para o seu carro admirando satisfeita aquele torrão de terra nu enfeitado, o olhar que lhe lancei, de surpresa e incredulidade, fez com que ela, por sua vez, voltando a cabeça por sobre um ombro sem interromper seus passos, me fitasse por um instante com clara apreensão. Apesar de meio bêbado, senti que a incomodava e me virei para outro lado, desviando a minha atenção dela. Porém, logo que ouvi o barulho da porta de um carro fechando, voltei-me novamente para onde estava a mulher e só pude vê-la partindo em seu veículo. E ela não tinha uma aparência extravagante ou lunática, pelo contrário, era atraente e estava bem vestida. Ainda que seja praticamente impossível traçar um perfil sequer razoável de alguém que vemos de relance uma vez na rua, sobre aquela mulher, dissesse eu o que dissesse, caso me perguntassem a seu respeito, jamais me ocorreria insinuar ter identificado nela algum traço de insanidade, à exceção daquele vaso sem nada que ela carregava com tanto cuidado e pelo qual inclusive pagara. A florista igualmente, a própria imagem da higidez psíquica, uma japonesinha magra e recatada com olhos plácidos e determinados que também pareceram algo temerosos ao darem pela minha insistência em examiná-la. Alguma coisa não encaixava direito naquele quadro, no meu entender aquelas mulheres não se ajustavam à cena, isso o que despertou em mim o espanto, acabei até esquecendo de comprar as flores para a minha namorada. A verdade, agora se sabe, era que o errado na cena da floricultura eram os meus olhos, nada mais. De qualquer modo, na manhã seguinte eu quase já não dava importância ao episódio, atribuí ao álcool minha percepção distorcida e não me ocupei mais do assunto até os sintomas se agravarem, o que não demorou muito.

Nada é mais difícil de ser visto do que aquilo que não queremos ver, do que aquilo que estamos convencidos de não existir. O episódio da floricultura já deveria ter bastado para eu perceber a alteração da minha visão, pois só a mim o acontecimento pareceu absurdo, ninguém mais dos circunstantes impressionou-se com coisa alguma pois nenhum deles via como eu via, ou como eu não via. Mas é aquela história, vivemos como se fôssemos imortais, como se fôssemos impecáveis, naquela noite nem me ocorreu que as outras pessoas no posto de gasolina podiam muito bem estar reparando no modo idiota com que fiquei observando as mulheres da floricultura, nada disso, quem está louco é o mundo, não eu, como se fôssemos eternos, não apenas imortais, pois até os nossos nascimentos, com o tempo, adquirem ares de virtualidade, a falta de lembrança converte-se em falta de existência, e, mesmo sabendo que tivemos um começo, em algum canto de nós parece residir a certeza inconfessa de que não viemos nem iremos, mas de que sempre somos, invariáveis, estátuas de nós no centro de nós mesmos, em meio ao turbilhão da vida. A pracinha próxima ao meu escritório ficava cada dia mais nua, um certo dia passei por lá e pela primeira vez não vi nenhum gato, achei isso ótimo, só lastimei que o pronunciado odor dos dejetos felinos ainda se fizesse tão presente, quem sabe as crianças maltrapilhas e os velhos banguelas também estivessem para ser desalojados. Porém, antes de eu deixar de ver os gatos, houve a barata. Num dia em que estávamos, eu e minha namorada, em meu apartamento, fomos à cozinha fazer um lanche, eu descalço, a barata atravessou-me o caminho e a desgraça só se me descortinou aos olhos depois que o maldito inseto já estava morto sob a sola nua do meu pé, minha namorada, sentada à mesa com um sanduíche entre os dentes, olhando o incidente começaram-lhe os olhos a marejar, subiu-lhe do estômago a inexorável ânsia e ela se precipitou para o banheiro, onde devolveu tudo que acabara de ingerir, enquanto eu xingava, xingava muito, tive ganas de amputar meu pé para esquecer o asco de esmagar aquele bicho. Nessa ocasião eu quase despertei para o problema que me atingia, afinal sempre tive ojeriza a insetos, quanto mais a baratas, gasto fortunas com dedetizações e desratizações, eu não podia ter-me deixado pisar tão bestamente naquele bicho no meio do piso branco, imaculado, da cozinha, era impossível que eu não tivesse visto a barata andando no chão, e contudo eu sabia que não a vira. Talvez tenha sido o nojo que me fez pôr a questão de lado dessa vez, mas nesse caso, quanto ao que eu presenciara, não me ficaram dúvidas, eu não estava sob o efeito de qualquer droga, minha sobriedade me dava uma certeza absoluta. Mas mais uma vez esqueci da minha perplexidade, gastei horas tomando banho, durante dias permaneceu sob meu pé a sensação horripilante daquele contato e a preocupação de haver contraído alguma doença. Quanto a eu não ter enxergado a barata andando sobre o chão branco, irreprochável, da minha cozinha, aquele baratão cascudo, quase negro, na minha cozinha, onde nunca surgiam insetos, quanto àquele ser repugnante só se ter mostrado aos meu olhos depois de pisado, fiz mais uma vez do inexplicável o inexistente e varri o enigma para debaixo do tapete da consciência.

No fim de semana seguinte fomos ao litoral visitar uns amigos. A manhã estava ensolarada, belíssima, a estrada vazia, eu dirigia despreocupado, tanto que custei a entender quando minha namorada, que até ali vinha quase cochilando no banco ao meu lado, entrou em pânico, gritou para que eu parasse o carro, pára, pára. Instintivamente tirei o pé do acelerador, apesar de nada ver que justificasse aquela atitude. O cachorro, minha namorada ainda disse, e acho que ela ia começar a articular um não quando veio o impacto, então freei o carro de vez, ainda sem enxergar coisa alguma. Minha namorada perplexa lacrimejava. Aos poucos, conforme a vida foi abandonando o corpo do animal, surgiu aos meus olhos, alguns metros adiante de onde parei, o cadáver de minha vítima. Levei o carro para o acostamento, tirei o corpo do bicho da pista, era um cão de grande porte, tive que arrastá-lo, e fui para junto da minha namorada, que chorava dentro do carro, desculpei-me, não sei por quê, disse-lhe que aquela fora uma distração imperdoável, menti-lhe que estava sonolento, esperei que nos acalmássemos e pedi-lhe que dirigisse pelo resto do trajeto. O fim de semana, passei-o como se estivesse em lugar nenhum, como se nem em mim estivesse. Eu não podia mais ignorar ou ter dúvidas, algo de muito sério acontecia comigo, eu só via os animais depois de mortos. Ainda durante essa estada na praia, uma noite fomos jantar num restaurante especializado em lagostas, daqueles em que elas são mantidas vivas dentro de um grande aquário e escolhidas pelo freguês para serem preparadas. Desnecessário dizer que só vi um enorme recipiente de vidro cheio de água, nada mais. Ou melhor, havia sim uma lagosta imóvel no fundo do aquário, a qual eu via claramente. Chamei o garçom e disse-lhe que o bicho estava morto, ele foi verificar, constatou que eu estava certo e, ligeiramente vexado, tratou de dar um sumiço no defunto.

Não contei a ninguém o que havia comigo, também como explicar aquilo, olha gente, eu não estou vendo algumas coisas, eu declararia, como assim, você está cego, eles me perguntariam, não, nada disso, eu só não vejo os seres vivos, eu responderia, vejam só, não há como engolir uma história dessas, eu mesmo não a engoliria, não fosse o fato de a coisa acontecer comigo. Mesmo quando, alguns dias depois, procurei um oftalmologista, deixei-me examinar sem dizer a verdadeira razão de minha consulta, na tola e inconfessa esperança de que o especialista de súbito estacasse, voltasse para mim um semblante surpreso e dissesse abismado, o senhor está perdendo a visão dos seres vivos, essa é uma doença raríssima da qual eu sou um dos pouquíssimos que conhecem a cura, ei-la, e assim exclamando ele me estenderia um tubinho com uma poção miraculosa que me deixaria bom na hora. É claro, o oftalmologista nada descobriu de errado em mim, o mesmo diga-se do neurologista e de todos os outros istas que busquei, sempre sem informar a nenhum deles a verdadeira razão de minha visita. Nada conheço de medicina além dos malefícios que a comida vendida por minha empresa causa ao corpo, o que me dá um cabedal considerável, é verdade, afinal é melhor saber sobre o que estou mentindo quando interrogado por comissões de investigação ou pela imprensa, e só a batata transgênica frita que comercializamos, ela sozinha agride tanto o organismo que, se vivêssemos num mundo sensato, classificá-la-iam como arma química. Daí pode-se concluir o quanto sei sobre doenças, sei inclusive de algumas que ainda nem foram catalogadas pelas academias. Falando de problemas nos olhos mesmo, o nosso café descafeinado, enriquecido com certas substâncias radioativas, comprovadamente provocou inúmeras deficiências visuais em espécimes de laboratório, embora em pouquíssimos casos se tenha chegado a uma cegueira completa e irreversível, pelo menos até agora. Enfim, mesmo não sendo médico estou bastante a par das doenças mais estapafúrdias existentes no mundo. Sendo assim, de antemão eu tinha já uma nítida sensação, não muito correta, depois eu saberia, de que nenhum daqueles doutores poderia ajudar-me, mesmo sendo todos profissionais de renome, com clientelas extensas e famosas, era quase impossível que algum deles conhecesse o meu mal. O tempo me desmentiria. E claro, antes que perguntem, esclareço-lhes que não faço uso freqüente do café descafeinado da minha empresa.

Curioso que, em todos os consultórios, os médicos me atenderam e me examinaram usando uns óculos esquisitos, com lentes espelhadas, grandes, pesadões, nenhum deles preocupou-se em explicar por que usava aqueles óculos, ainda mais num ambiente fechado, e vinha-me a suspeita de que, assim como eu, eles ocultavam algo importante. Desde então passei a reparar que muitos do meu meio usavam aqueles óculos, não só os médicos, mas também os executivos, advogados, políticos, publicitários, fossem homens ou mulheres, lá estavam aquelas lentes, enormes, curvas, indo da têmpora até o nariz e dos zigomas até acima das sobrancelhas, parecendo dois daqueles espelhos convexos de elevador, e as hastes grossas, metálicas, tudo feito de modo a esconder por inteiro os olhos do portador, no mínimo aquela era uma moda muito estranha, mais condizente com adolescentes extravagantes do que com gente madura de sucesso. Nunca me senti com liberdade para perguntar a alguma daquelas pessoas a razão de usarem uns acessórios de gosto tão duvidoso, simplesmente, para não destoar muito do meu meio, passei a andar também com óculos, só que mais discretos, leves, de lentes fumê. Entretanto ficou-me uma clara impressão de que os que usavam aquelas enormes lentes espelhadas formavam um grupo à parte falando uma linguagem própria entre si. Sempre aflorava-me uma sensação de conspiração em andamento a cada vez que eu me aproximava de um daqueles grupos de óculos espelhados e eles, por causa da minha presença, desconversavam o assunto de que vinham tratando até a minha chegada. Meu mundo se me tornava cada vez mais incompreensível.

Durante a minha peregrinação pelos consultórios examinaram-me de todos os jeitos e segundo as mais avançadas técnicas. Senti-me satisfeito por dispor do que havia de melhor em serviço médico, muito embora isso para nada contribuísse no meu caso. Eu procurara todos aqueles doutores por uma questão de desencargo de consciência, para que depois não viessem me recriminar por não ter agido com bom senso, mas a verdade é que a coisa progredia e eu começava a entrar em desespero, cogitei mesmo de ir a médiuns, terreiros de macumba, essas coisas, cheguei a sondar discretamente minha empregada doméstica, que sempre mantinha uma vela acesa junto com um copo de água aos pés da estátua de uma qualquer dessas divindades num canto da área de serviço do meu apartamento.

Novamente foi a insignificante pracinha, de uma hora para outra ela se tornara tão significativa para mim, que me deu a medida do desenvolvimento da minha cegueira. Naquela manhã eu saí cedo de casa, estava apressado, precisava passar pelo escritório rapidamente e em seguida tomar um vôo para participar de uma reunião importantíssima no outro lado do país. Meu motorista me aguardava na garagem do meu prédio, desde o atropelamento daquele cão eu contratara alguém para dirigir por mim, desci até lá pelo elevador de serviço, no qual já estavam uma vizinha e seu cachorro, eu sabia da presença do totó por causa da coleira vazia pendurada numa guia que a mulher segurava, o que mesmo assim não evitou um acidente. Ao entrar no elevador eu cumprimentei a mulher e, como disse, aquela coleira vazia alertou-me para a presença do cachorro, todavia não calculei bem a posição do bicho, que devia estar sentado, e ao postar-me para aguardar a descida até a garagem pisei-lhe em cheio na cauda, ao que ele imediatamente retribuiu cravando-me uma mordida no tornozelo. Eu e a dona do cachorro chegamos à garagem entre pedidos mútuos de desculpas, entrei no carro sem nem olhar para o motorista. O cão era pequeno e não me mordeu movido por um desejo de atacar propriamente, ele fez aquilo mais como um reflexo para repelir a minha agressão, involuntária, diga-se de passagem, a dentada nem sequer marcou a barra da minha calça, mas a região ficou dolorida e fui por todo o trajeto até o escritório massageando meu tornozelo. Coitados dos cães, vinham sendo as vítimas mais constantes do meu mal.

A ansiedade em que sempre fico quando viajo e faço reuniões de negócios, a irritação comigo mesmo por ter esquecido no escritório aqueles documentos que agora eu precisava pegar antes do meu vôo, o susto que levei com a mordida do cachorro, meu estado de nervos era lastimável. Vinguei-me em meu motorista, mandando-o apressar-se a toda hora e ameaçando demiti-lo caso eu perdesse o avião. A minha raiva, somada com a naturalidade, por assim dizer, com que eu já encarava o fato de não ver alguns seres vivos, tudo isso levou-me a não me dar conta de que algo mudara, havia qualquer coisa diferente naquele dia, mas só de forma muito secundária a consciência dessa mudança alcançava-me a mente. As ruas estavam mais vazias, uma coisa assim, estava faltando algo mais no mundo, eu só não sabia ao certo o que era e naquele momento nem estava interessado em descobri-lo.

Era muito difícil fingir-me de normal naquela situação, viver com aquilo guardado só para mim, sim, porque eu tinha plena certeza de que, se alguém além de mim soubesse da anomalia, minha vida seria destruída, tudo aquilo por que eu vivera desmoronaria antes dum piscar de olhos. Eu precisava passar o tempo todo buscando indícios do que eu não via. Vasos e pedaços de terra alertavam-me para a presença de plantas, o maior problema eram as trepadeiras e similares, essas plantas que espalham seus galhos pelo ar ou se apóiam em muros ou coisas do gênero, expandindo-se a grande distância de seus caules, já me acontecera de ficar todo embaraçado numa buganvília que ainda me espetou com aqueles seus espinhos longos. Mas as plantas eram o de menos no meu ambiente urbano, o que mais me preocupava nesse meio eram os animais de estimação, eu vivia atento principalmente a coleiras vazias flutuando no ar, assim como a quaisquer outros sinais da existência de um bicho no lugar onde eu estivesse, cheiros, barulhos, o que fosse, e mesmo assim às vezes eu não era capaz de poupar-me de constrangimentos tais como o de pisar no rabo do cachorro da vizinha no elevador ou o de sentar sobre a gata persa da esposa do presidente da minha empresa, numa ocasião em que ele ofereceu um banquete em sua mansão. Eu vivia o tempo todo numa tensão insuportável, agravada ainda pela convicção de que todos notavam a alteração no meu comportamento que essa tensão acarretava, notavam e silenciavam, assumindo atitudes acanhadas diante dos meus deslizes. Só a minha namorada ousou ser sincera perguntando-me o que acontecia, eu lhe disse que não sabia, que vinham me atacando esses lapsos inexplicáveis, esses esquecimentos, que eu já fora a vários médicos tentando descobrir o que me acometia e que nenhum deles soubera dizer o que estava errado em mim. Aquilo aos poucos, ou nem tão aos poucos, vinha me consumindo, a deficiência, o segredo, a dissimulação, uma hora ou outra acabaria por arrebentar, era o que eu sentia, tudo seria posto a perder, talvez eu acabasse num depósito de loucos, ou então num banco de uma pracinha miserável, velho, mascando a língua a olhar para o nada, esses os temores que torturavam o meu âmago, temores que nem a mim mesmo eu confessava mas cujas imagens enchiam-me a mente dia e noite, drenando toda a minha sanidade.

Cheguei ao meu escritório no auge da impaciência, chamei duas secretárias para me ajudarem a encontrar os documentos, que estavam em diversos arquivos apenas do meu conhecimento. Só mesmo a minha peculiar condição podia explicar o esquecimento de preparar aqueles papéis no dia anterior ao da viagem, viagem de que, aliás, tentei eximir-me de todas as formas, desnecessário dizer a razão, mas na qual o presidente da companhia fazia questão terminante da minha presença, eu era seu homem de confiança.

Desde que contratara um motorista eu não vira mais aquela pracinha perto do estacionamento, o motorista me deixava num outro ponto, mais próximo do meu lugar de trabalho, e depois era ele quem cuidava de guardar o carro. Isso era bom inclusive para a minha segurança, pois assim eu só tinha que andar pela parte revitalizada do centro da cidade, a qual era ocupada pelas sedes de várias grandes empresas que formaram uma associação e, dentre outras providências, dotaram aquela região de inúmeras câmeras de vigilância, seguranças particulares e policiais, a fim de manter afastada a criminalidade. Ali o acesso era exclusivo para pedestres e a gente podia andar sem medo, o risco era praticamente nenhum. Por isso saí do prédio da companhia distraído, conferindo na minha pasta se tudo que eu necessitaria na reunião estava lá. Já me sentia bem mais tranqüilo, a adversidade estava resolvida e ainda havia tempo suficiente, até com um pouco de folga, para pegar o avião, eu só precisava entrar no carro e deixar que os outros me conduzissem, primeiro o motorista, até o aeroporto, depois o piloto do avião, até a minha cidade de destino. Isso significava algumas horas para descansar a cabeça e deixar as idéias assentarem, pensei com alívio.

Seguindo ordens minhas, meu motorista me esperava no mesmo ponto em que me deixara, e, é claro, era para lá que eu devia me encaminhar. Entretanto, seja pela força de um hábito havia tão pouco abandonado, seja pelo próprio relaxamento experimentado ao resolver o problema dos documentos, o fato é que, ao sair do prédio da companhia olhando o interior da minha pasta, segui para o lado oposto ao que devia tomar e, quando dei por mim, já quase chegara ao estacionamento, como se ainda fosse minha incumbência levar o carro para lá e de lá tirá-lo. E lá estava eu, feito um idiota, bem em frente à maldita pracinha dos meus horrores. Após um momento de espanto, liguei pelo celular para o meu motorista, dizendo-lhe para vir pegar-me ali. Fechei minha pasta e permaneci em pé na calçada, de costas para a praça, meu carro não demoraria a chegar. Cada vez mais alto uma voz dentro de mim alertava-me para alguma mudança naquele dia, algo a que eu não queria prestar atenção mas que me entrava pelos olhos com a delicadeza de uma manada.

Desde que eu acordara, por causa da pressa e do nervosismo, a única coisa que pusera em meu estômago fora uma xícara de café, e agora, durante a espera pelo meu carro, meu corpo resolveu protestar pela falta de alimento, senti um ligeiro mal-estar, um pouco de náusea e dor de cabeça, e tive a necessidade de sentar num banco da pracinha. Minha pressão devia estar caindo. Sentado naquele banco, com minha pasta ao meu lado no assento, dei uma pequena folga no laço da gravata e segurei minha cabeça esfregando as mãos em movimentos circulares nas têmporas. Minha maneira de agir despertou a atenção dos circunstantes, um dos velhos da praça deixou seu assento e veio até mim perguntar-me se eu estava bem, quando ergui os olhos para responder-lhe fiquei mudo. O fato novo do dia, que até então eu vinha insistindo em ignorar, mostrou-se-me subitamente, tombou em minha consciência com imenso estrondo. Novamente a infeliz pracinha servia de meio para comunicar-me o progresso da minha cegueira. Ao olhar para o velho eu não vi seu rosto nem qualquer outra parte do seu corpo que estivesse à mostra, só suas roupas, em pé, paradas diante de mim como se estivessem infladas de ar, e acima das roupas, também flutuando no ar como se em nada se apoiasse, um par de óculos, que o velho usava certamente para corrigir sua visão. Demorei alguns instantes encarando aquilo que eu não via, o rosto do velho, e depois, ainda sem dizer nada, dirigi meu olhar ao resto do ambiente, eu não enxergava ninguém, finalmente as pessoas tinham sumido das minhas vistas, delas só restando as vestes e os acessórios, chapéus, pulseiras, relógios, óculos, que andavam por si sós de um lado para outro, qual tivessem vida própria. Diante do meu silêncio, o velho colocou a mão em meu ombro, deu-me uma sacudidela e gentilmente repetiu sua pergunta, meu filho, você está bem, precisa de alguma coisa. Nesse meio-tempo os outros velhos da praça também saíram de seus lugares e vieram juntar-se ao primeiro para observar-me. Ao ver aquela aglomeração em meu redor senti-me ainda mais angustiado, levantei-me, minha expressão devia ser a mais aparvalhada deste mundo, e, apesar da fraqueza, comecei a andar de volta à calçada querendo distanciar-me daquele ajuntamento e ao mesmo tempo cheio de medo de desmaiar por causa do esforço de ficar em pé. Meu carro demorava a chegar, eu entrava em desespero, sentia o coração batendo de arrebentar na garganta. Felizmente meu motorista apareceu e notou o meu mal-estar, desceu e veio ajudar-me a entrar no carro e sentar no banco de trás, depois voltou e pegou minha pasta, que eu esquecera naquele banco desgraçado e que um dos velhos vinha trazendo para mim. Já a caminho do aeroporto, eu transpirava em abundância, mandei ligar o ar refrigerado no máximo e tirei o paletó e a gravata, abrindo minha camisa até embaixo. O motorista disse-me que ficara retido num engarrafamento causado por um acidente entre dois carros, mas que o nosso tempo ainda era suficiente. Eu já nem estava dando muita importância àquela merda de vôo, mandei meu motorista parar numa loja e comprar uma garrafa de água e alguma coisa salgada para encher minha barriga.

Já no aeroporto, depois de pegar meu bilhete de embarque, fui ao banheiro para tentar recompor-me um pouco e lá, enquanto passava água no rosto, olhei para o espelho e, óbvio, não me vi, procurei arrumar meu cabelo, que eu também não via, e fiquei a perguntar-me, minha cabeça numa confusão tremenda, se desde que eu acordara os seres humanos me estavam invisíveis, se eu fora capaz de preparar-me para sair sem notar que não me via no espelho. Sinceramente, não pude tirar uma conclusão, mas desde que saíra à rua naquela manhã eu sabia que então já não podia ver os seres humanos, pois ficara a lembrança indelével da estranha sensação de vazio, subconscientemente fiz de tudo para ignorá-la, que me invadira enquanto eu olhava para o mundo só pensando em meus problemas, sem prestar-lhe uma verdadeira atenção.

Na sala de espera do aeroporto e depois, já durante o vôo, fiquei de olhos fechados a maior parte do tempo, fingindo dormir, pois a minha condição emocional impedia-me de realmente pegar no sono. Bebi vários uísques no avião para ver se a embriaguez fazia-me apagar, porém tudo que consegui foi trazer minhas emoções à tona, fiquei a ponto de chorar em minha poltrona e fui correndo ao banheiro de bordo, onde dei vazão às lágrimas. Meu instinto de preservação falou mais alto após o choro e percebi que, se continuasse enchendo a cara, eu terminaria falando demais e contaria a estranhos sobre o meu problema. Depois de jogar muita água fria em minha face invisível, voltei à minha poltrona e pedi café à aeromoça. Aqueles montes de roupas vazias sentados nas poltronas em volta de mim deixavam-me aflito, logo voltei a fingir que dormia. A náusea ainda não me abandonara de todo e as doses de uísque que bebi só contribuíam para piorá-la.

No que dependesse de mim, a reunião teria sido um desastre, eu não conseguia, por mais que tentasse, prestar qualquer atenção ao que falavam. O assunto era uma parceria entre a minha companhia e uma grande rede de supermercados. Quem me salvou do fracasso foi o representante local da minha empresa, nosso gerente regional, um jovem que demonstrou um assombroso poder de negociação enquanto eu procurava não dar relevância ao fato de não ver o rosto de ninguém naquela sala, onde muitos usavam aqueles esquisitos óculos espelhados. Nosso jovem gerente regional orientou-me o tempo todo, deixando-me usar suas idéias como se fossem minhas, e eu o seguia cegamente, apesar de desagradar-me demais ver-me nas mãos daquele fedelho tão competente, mas, no que dependesse de mim, eu mal sabia onde estava, quanto mais do que se falava naquela sala, minha mente era uma completa desordem que só aumentava a cada vez que eu olhava para aquelas roupas vazias, suspensas no ar, a gesticular e a mover-se. Nosso competente gerente regional, orientando-me, levou a bom termo as discussões. Quando a reunião acabou, prometi ao rapaz recomendá-lo à cúpula da companhia, pura mentira, ninguém quereria ver um tipo como ele subindo na carreira, simplesmente apropriei-me das suas virtudes e deixei que me imaginassem o grande talento da reunião, e ele, se fosse tão inteligente e capacitado quanto dera a entender, já deveria saber que era isso que eu ia fazer.

Essa eternidade calhorda em que afundamos, essa onipotência tão frágil e relativa que nos arrogamos vive a trair-nos a cada minuto do dia, seja no copo que nos escorrega da mão e se estilhaça no chão quando íamos trazê-lo à boca, seja no pneu vazio que nos faz perder um compromisso inadiável, seja na camisinha furada que nos arremessa certeira numa paternidade indesejada ou nos enleios de uma moléstia venérea ainda menos querida, seja como for, as maneiras são infinitas, o mundo a toda hora grita-nos o quão frágeis, dependentes e passageiros somos, e nada mais exposto às mazelas do acaso que esse homem da sociedade de consumo, que não é ninguém sem água tratada, energia elétrica, telefone, supermercado e shopping center, justamente ele, que talvez seja quem mais se creia supremo. Tudo em volta dele cai, tudo, mais cedo ou mais tarde, acaba, inclusive ele, e, no entanto, o lorpa segue altaneiro, dono de si, até um dia ser despejado de seu mundo de quimeras sem aviso prévio, um transtorno, uma perda, uma doença, uma morte, pronto, lá se foi a eternidade pelo ralo e o sujeito fica só, a sentir-se nu em pêlo na avenida da realidade.

Depois daquela reunião, por uma questão de cortesia comercial, digamos assim, tive que permanecer naquela cidade até a manhã do dia seguinte. Fui levado para conhecer lojas do nosso cliente, de noite precisei comparecer a um desses banquetes meia-bomba, bem ao estilo das elites das metrópoles secundárias deste país, algo como a quarta via em carbono de um original, para quem lembra do papel carbono, você sobrepunha cinco folhas de papel ofício intercaladas com quatro folhas de carbono, colocava tudo na máquina de escrever, batia o texto e depois tentava ler a última daquelas folhas, na qual as letras não passavam de borrões. Assim foi aquele jantar, um borrão dos que aconteciam nos principais centros, até me senti grato, naquela ocasião, por não poder enxergar as pessoas, pois assim eu era poupado da terrível visão das maquiagens, apesar de algumas serem tão carregadas que me tornavam quase visíveis os rostos, e dos penteados das damas da sociedade local, as roupas, tinha até smoking azul-claro com camisa de babado, e a decoração do ambiente, cujo ápice era uma cabeça de boi sobre um grande arco em forma de ferradura no fundo do salão, já bastavam para dar-me uma boa medida do resto. Apesar de tudo isso, meu anfitrião, o presidente da rede de supermercados com que negociávamos, tinha ótimos charutos e um conhaque de primeira, e a comida e os vinhos também não eram nada maus. Consolei-me do fastio comendo, bebendo e fumando. Quando eu já ia me retirar para dormir, o filho do anfitrião convidou-me para uma festinha na principal suíte do melhor hotel da cidade, que aliás também pertencia ao seu pai. Maconha, álcool, pó, ecstasy, não importava o que eu ingerisse, era-me impossível entrar no clima daquela rave da roça. Quanto mais as mulheres se despiam menos eu as via, muitos ficavam completamente nus mas não tiravam aquele raio daqueles óculos espelhados horríveis que cada vez mais me intrigavam. A nudez daquela gente deixou-me sem referência de sua localização, comecei a trombar nas pessoas em posições comprometedoras sempre que me locomovia, isso desagradou alguns, que leram em minhas trapalhadas intenções pouco ortodoxas. Não adiantava explicar que aquilo era acidental, então resolvi retirar-me e fui para a minha suíte, que ficava no mesmo hotel. Já sozinho em meus aposentos, deitei mas não tive sono, fui à varanda, puxei uma cadeira e sentei sem olhar para nada, sem pensar em nada, só sentindo a minha eternidade definhar. A festa continuava lá em cima, ninguém daria pela minha falta.

Definitivamente não havia como falar a ninguém da minha deficiência. Em resumo, as pessoas poderiam ter dois tipos de reação, caso eu desse com a língua nos dentes, ou de incredulidade, de longe a mais provável, quando então me tachariam de maluco, ou de credulidade, que talvez fosse pior, pois nesse caso eu terminaria convertido em cobaia cativa de laboratórios de pesquisa, indo de uma mesa a outra até que tivessem uma minuciosa descrição da minha patologia, o que de forma nenhuma implicaria na descoberta de sua cura, mas certamente resultaria numa linda e exaustiva classificação e em caudalosas verbas para cabeças premiadas estudarem o novo mal, isso que eu pensava. Trabalhando no ramo de alimentos conheço bem os interesses e os procedimentos da nossa ciência, ao menos os da ciência que tem acesso ao capital para financiar suas descobertas.

Minha situação era pior que má. Assim que voltei da viagem tirei um mês de férias. Eu nunca me afastara por tanto tempo do trabalho, nem nunca tirara uma folga para isolar-me das pessoas, justamente o que eu fazia naquele momento.

Inicialmente fui para uma casa que aluguei nas montanhas. Péssima idéia, eu devia ter imaginado de antemão, era muito verde, verde para todos os lados, para onde quer que se olhasse, só que eu não o via, eu ouvia o canto dos pássaros, o vento a farfalhar as folhagens, sentia o aroma do mato e não podia ver nada disso, só terra, terra nua ou coberta de folhas e árvores mortas, o panorama verdejante do campo em meus olhos tornava-se o cenário dum filme de terror ou de guerra, aqueles troncos pretejados e carcomidos, uns tombados e outros ainda precariamente em pé, aquelas folhas escurecidas em processo de putrefação e o chão como o chão usa ser em seu estado natural, terroso, às vezes avermelhado, às vezes marrom escuro. Além do mais, não havia como eu caminhar naquele lugar, era um constante esbarrar em troncos e galhos invisíveis.

Logo voltei para a cidade, melhor ficar em casa, a natureza deprimia-me, e se eu fosse a qualquer das localidades que costumava visitar a passeio, Nova Iorque, Las Vegas, Miami, creio que seria ainda pior, talvez eu me sentisse como um doente terminal a evocar os momentos de quando sua vida valia a pena.

Voltei para casa e lá permaneci trancado, sem contato com ninguém além de minha namorada e a empregada. Descuidei de minha aparência, a qual já não me era visível havia alguns dias, assim como da minha higiene pessoal, eu vivia em trajes menores comendo e bebendo diante da televisão, muitas vezes dormia no sofá do meu home theatre com o televisor ligado, entre restos de pizza e petiscos e latas de cerveja e refrigerante vazias. Algo dentro de mim cedera de vez, qualquer esforço, por mínimo que fosse, causava-me um imenso cansaço e levava-me a reagir, se é que isto poder ser chamado de reação, com uma crescente apatia, eu chafurdava no meu mais terrível pesadelo com a indiferença de uma geleira. Pouco me importava o que ia ser ou não, eu jogara a toalha, dali em diante viveria isolado do mundo, o patrimônio que eu acumulara me permitiria viver num padrão só um pouco inferior ao que até então mantivera, o que de modo algum me causaria preocupações materiais, as preocupações visuais já bastariam para me enlouquecer, eu poderia viver com pena de mim sem temer a fome.

Minha namorada só me deixava para ir trabalhar, coitada, ela gostava mesmo de mim, creio até que me amava, e eu olhava aquelas roupas suspensas no ar paradas diante de mim, sabia que era ela ali, pronta para ficar ao meu lado, só não sabia a grandeza do seu sentimento, era muito mais do que eu merecia. Raras foram as vezes em que ela fez alguma referência ao meu comportamento, e em nenhuma delas dirigiu-me censuras, normalmente ela não deixava transparecer a preocupação que sentia e, como se fizesse uma brincadeira, procurava resgatar-me do abismo, fazia-me a barba, levava-me para tomar banho, sempre que chegava da rua vinha com coisas para mim, revistas, filmes, guloseimas de baixo teor calórico para evitar que eu engordasse ainda mais. Ela agia como se nada estivesse fora do lugar, algo me dizia que estaria comigo mesmo nas piores condições. Em seu trabalho ela talvez ganhasse mais do que eu, além de vir de uma família rica, o que não era o meu caso, minha ambição mantinha-me junto dela por ser bonita, bem sucedida e bem nascida, uma escada para a minha ascensão social. Apesar do meu interesse em tê-la ao meu lado como um trunfo do meu arrivismo, minha namorada estava comigo porque me amava, tanto que foi nesse meu período de absoluta decadência, em que ninguém me procurava, que ela mais esteve presente, e eu sem dar o menor valor a isso, eu só queria sumir na dor e não dever favores a ninguém, nem mesmo a ela.

Dívidas de dinheiro são mensuráveis, pagam-se ou se adiam, resolvem-se mediante acordo ou perante um juiz e ponto. As dívidas afetivas, contudo, não sabemos nunca se as saldamos, e graças a elas sentimo-nos obrigados a ceder às necessidades alheias, chegando mesmo a ter que abrir mão dos nossos interesses. Como pode ser danosa uma estima.

Aquele namoro já durava muito, quase dois anos, e nós estávamos praticamente morando juntos, cada um tinha sua casa, mas quase toda noite dormíamos na mesma cama, fosse na minha ou na dela. Eu procurava afrouxar o nosso laço de modo a mantê-lo na medida apropriada aos meus imperativos, o que sempre causava certas mágoas, não porque da parte dela houvesse qualquer intento de dominar-me, mas sim por causa do ânimo que me levava a agir daquela forma, por causa do meu desejo de tê-la somente quando me fosse conveniente. Ela se sentia usada e não era à toa, mas o amor cega, às vezes para sempre, assim como o desamor, muita luz e muita treva.

Minhas férias chegavam ao fim sem novidades, eu mantinha o propósito de abandonar o trabalho e tornar-me recluso. Meu padrão de vida cairia, mas essa era a menor de minhas inquietações, eu não necessitaria de muito para viver, talvez fosse mais correto dizer vegetar, daquele jeito. Meu desejo sexual desaparecera, meus cuidados comigo eram nenhum, eu aceitava qualquer porcaria para comer e mesmo as bebidas, que eu consumia cada vez mais, já não precisavam ser de primeira qualidade como antes. Minha namorada vinha em meu socorro tentando ao máximo compensar a minha desídia, mas eu não sabia até quando poderia ou quereria contar com ela, eu tinha que pensar a minha vida sozinho, com um pouco menos de luxo mas de maneira nenhuma em meio a necessidades, ao menos materiais. Claro, eu também cogitava suicidar-me muitas vezes diante da televisão, o pulso mole, o pensamento, a imagem na mente, a janela aberta, a faca na cozinha, o frasco na pia do banheiro, o gás tão volátil a evolar-se do fogão, a arma no criado-mudo, nunca cheguei às vias de fato mas parecia-me cada vez mais provável a concretização. Enfim, minha mente estava nesse pé a poucos dias de acabarem minhas férias. Então tudo começou a mudar.

A televisão oblitera-nos a inteligência, depaupera-nos a percepção, numa palavra, brutaliza-nos. Quando eu tinha uma vida nos eixos quase nunca me sobrava tempo para sentar diante da obscurante caixa luminosa, embora houvesse vários aparelhos em meu apartamento e até um cômodo convertido em home theatre. Naquelas minhas férias de recluso, porém, ver televisão era praticamente a única coisa que eu fazia enquanto acordado, além de comer e beber. Pois eu fui capaz de passar tantos dias hipnotizado diante de uma tela sem me dar conta de um fenômeno de grande relevância que sucedia bem ali, à minha vista, talvez vocês até já imaginem o que fosse. Naquele dia, obediente a uma rotina que já se fixara, eu acordei quase ao meio-dia e me arrastei para o home theatre, de onde dei ordem à empregada para trazer-me um sanduíche e cerveja. Em seguida liguei o televisor, em cuja tela a primeira coisa que apareceu foi uma propaganda de um produto da minha empresa, um refresco em pó cem por cento natural, vejam só vocês, o qual era avidamente ingerido por uma dessas estrelas vendedoras de bilhões de discos de música infantil pasteurizada. No fim do anúncio, após engolir todo o conteúdo do copo, a criatura lambia os beiços e lançava um olhar direto para a câmera, no qual espero que ela não quisesse demonstrar inteligência. Eu conhecia esse comercial antes mesmo de ele ser veiculado nos meios, desde quando ele fora exibido apenas para os executivos da companhia a fim de que opinássemos a seu respeito, e desde então coloquei-me contra a peça, dando minha preferência a um outro em que somente se mostravam crianças de verdade, mas obviamente fui voto vencido e o filme com aquela piranha foi para o ar. Agora, todas as vezes em que eu ligava a televisão e via aquela cara sorridente a encher a tela, pensava comigo mesmo, quanta babaquice. E justamente quando mais uma vez me passava esse pensamento pela cabeça foi que eu notei a coisa importante que a televisão me proporcionava e de que até então eu me desapercebera, por meio dela, televisão, eu era capaz de ver os seres vivos, afinal era isso o que acontecia naquele momento, eu via a face da mulher na propaganda do refresco. Lembrei-me de que em algum lugar do apartamento eu deixara uma filmadora, uma dessas compactas cujo visor é como uma pequena tela de televisor, eu a comprara numa de minhas viagens, usara-a umas duas ou três vezes, depois enjoara dela e a largara num lugar qualquer, a questão agora era encontrá-la.

Com a câmera de vídeo eu pude novamente ver as pessoas, os animais e as plantas. Embora fosse estranho viver carregando aquela geringonça, eu me sentia tão parvo quanto um turista japonês, e mesmo havendo vários lugares em que não me deixavam usá-la, o visor digital permitia-me enxergar como alguém normal. Essa descoberta restituiu-me o ânimo de viver, quando as férias acabaram voltei ao trabalho sem nenhuma intenção de demitir-me.

As pessoas notavam a câmera na minha mão e muitas se desagradavam da sua presença, no entanto a maioria tolerava a engenhoca. Decerto essa tolerância, ao menos no meu ambiente de trabalho, não resultava apenas de uma atitude espontânea dos meus interlocutores, ela era adotada em obediência a uma ordem do presidente da companhia, que para minha surpresa vinha sendo de uma complacência extraordinária para com as minhas esquisitices, ele era meu único superior hierárquico, os demais ou estavam no meu nível, compondo a diretoria executiva, ou abaixo de mim, e o meu relacionamento com ele, o presidente, sempre fora muito bom, tanto quanto possa ser o relacionamento entre predadores que caçam uma mesma presa, diziam até, e eu torcia para que fosse verdade, que eu era o seu mais provável sucessor. Fora o presidente da companhia o primeiro a aparecer lá no trabalho com aqueles bizarros óculos espelhados, depois outros membros da diretoria também passaram a usá-los. Todos que andavam com os óculos pareciam formar um grupo à parte, e, desde quando me viram com aquela câmera para cima e para baixo, eles, os espelhados, deram-me a impressão de terem uma especial deferência para comigo. Em meio a todas essas novidades e ao meu esforço para adaptar-me ao uso daquela câmera, certa vez em que eu aguardava o elevador no saguão para subir ao meu escritório, um desses espelhados, um colega com quem eu pouco conversava, chegou bem perto e sussurrou ao meu ouvido, em breve você voltará a ver a si mesmo e aos seus semelhantes. Essa afirmação causou-me mais que um espanto, virei-me para quem a fizera e, antes que eu dissesse qualquer coisa, ele levou o indicador aos lábios impondo silêncio e completou ainda num sussurro, tudo no seu tempo, após dizer-me isso deu-me as costas e foi embora. Subi no elevador tentando entender o acontecido, a afirmação daquele sujeito dera-me a sensação de ter sido desnudado, ele sabia o que se passava comigo, o segredo que tanto me custava preservar, e que história seria aquela de ver-me e aos meus semelhantes. Passei o resto do dia tentando encontrar o tal espelhado, tudo em vão, ele trabalhava numa outra unidade da companhia, para a qual telefonei várias vezes infrutiferamente.

Entretanto, o que aquele sujeito me vaticinara cumpriu-se. Lá estava eu numa manhã terminando de ajeitar-me para o trabalho, fui para diante do espelho dar um último ajuste no nó da gravata e vi-me, assim, sem mais, era eu, sem dúvida o meu reflexo, quase não acreditei, lá estava a minha imagem claramente a mostrar-se para mim. Pareceu-me o fim daquele pesadelo pegajoso, demorei algum tempo a apalpar-me, a admirar minhas mãos. Saí satisfeito do meu quarto e dirigi-me à cozinha, onde estavam minha namorada e a empregada, certo de que as enxergaria. Enganei-me, ambas continuavam como antes, dois conjuntos de vestimentas suspensos no ar como se ninguém, além do ar, os ocupasse. A euforia com que entrei na cozinha dissolveu-se tão rapidamente que elas até interromperam o que faziam, minha namorada tomava café e folheava o jornal e a empregada mexia uma mistura qualquer com uma colher de pau, para me observarem enquanto eu, parado na porta, sentia o frio choque de uma súbita decepção. Mesmo não vendo os rostos das duas mulheres eu sabia que elas me olhavam à espera de algum gesto, uma declaração, um gracejo, uma saudação especial. Brindei-as com um morno bom-dia e um palavrão. Tomei meu café em silêncio e antes de sair passei pelo meu quarto para pegar a câmera de vídeo tão precocemente aposentada.

Mas de fato a câmera já não me era mais tão necessária quanto antes, constatei isso no meu trabalho. Assim como a mim, havia outras pessoas a quem eu podia enxergar, não eram muitas, na verdade a maioria das coisas vivas continuava-me invisível, mas os membros da diretoria da empresa e, de modo geral, os demais executivos e profissionais em posições similares à minha mostravam-se aos meus olhos nus. Essa era a gente que me interessava ver, aquela com quem eu conversava e fazia negócios. Assim, no cotidiano do meu trabalho, a câmera de vídeo deixou de ser necessária, o que teve grande valia. Praticamente todos os que agora eu via eram espelhados, os poucos que não eram pareciam confusos e atrapalhados em seu proceder, assim como eu, sendo que inclusive flagrei dois deles tentando usar câmeras compactas de modo discreto. Vinham-me à lembrança as palavras do espelhado no saguão do elevador, ver-me a mim e aos meus semelhantes, eu precisava falar com aquele sujeito, exigir-lhe explicações.

Aqueles espelhados pertenciam à minoria mais rica da população e estavam tomando conta do mundo, não sob o aspecto demográfico, mas sim em termos de poder político e econômico, cada vez viam-se mais deles nos governos, nos judiciários, nos meios financeiros, nos órgãos de comunicação de massa. Entre si eles riam, os espelhados, cochichavam e riam como grupinhos de adolescentes, e raramente ficavam sem seus óculos. Quando um não-espelhado se aproximava deles era gritante a mudança de atitude, assim como do tom e do tema da conversa. Às vezes essas coisas levavam-me mesmo a fantasiar uma dessas histórias de dominações alienígenas feitas por intermédio de invasões de corpos. Pensamentos dessa espécie assaltavam-me principalmente porque eles, os espelhados, vinham me tratando de forma cada vez mais cortês, e, sinceramente, isso não me agradava, pois sua atitude dava-me a sensação de que eu era um objeto para eles, objeto de uma compaixão que dissimulava um desejo de dominar, uma caridade mal intencionada, enfim, algo me dizia que talvez aquela deferência me fosse dispensada por simples pena, para manter-me afastado e sob controle, e não por simpatia ou camaradagem, afinal eu não era um deles, eu pensava, e não compartilhava seus segredos. Eles faziam questão de me cumprimentar calorosamente, davam-me a vez no elevador, mas não me chamavam para as suas misteriosas conversas, agiam como se me observassem, como se gentilmente dissecassem meus propósitos, o que me provocava desconforto e frustração.

Finalmente consegui, por telefone, encontrar o espelhado que augurara a melhora da minha visão. Você sabe o que está acontecendo comigo, perguntei-lhe, acalme-se, seu segredo está em boas mãos, ele me respondeu, mas não me basta saber que o meu segredo está bem guardado, eu preciso que você me diga mais, se há como curar esta doença, se ela vai piorar, se posso ter alguma esperança, eu lhe disse, não é conveniente falar disso por telefone, ele me disse, então marquemos um encontro para conversarmos, você diz quando e onde, eu lhe disse, não, não, um encontro não seria adequado, faça o seguinte, procure o presidente da nossa companhia, não tenha medo, conte-lhe tudo e confie no que ele decidir, ele me disse e desligou.

No fim-de-semana seguinte eu e o presidente da companhia estávamos a bordo de um helicóptero a caminho da ilha. Fazia um dia belíssimo, durante toda a viagem distraí-me com a paisagem, o mar variava do verde ao azul sempre em tons luminosos e a orla era toda coberta por uma mata exuberante, alternando faixas de areia branca com majestosos rochedos. Ainda que muito me contrarie admitir esta verdade, tenho que dizer-lhes, naquele momento eu estava fascinado por poder ver o espetáculo da vida. As faixas de areia branca alternadas com as pedras e a vegetação, o céu azul e o calor moderado, um ambiente perfeito. Eu seguira a recomendação daquele colega, procurara o nosso presidente, o qual me convidou para um almoço em que contei-lhe resumidamente tudo que me vinha sucedendo. Ele ouviu com muita atenção toda a história, chegou mesmo a tirar seus óculos espelhados, creio que para permitir-me ver seus olhos, e quando terminei meu relato ele se manteve em silêncio por uns instantes, como quem pesa cuidadosamente o que vai proferir, até dizer-me isto, é apavorante viver desse jeito, disse-me ele e ainda completou, pensando que se está só no mundo, eu não precisava responder àquilo, apenas fiz que sim com a cabeça e escapou-me um longo suspiro involuntário, precisei conter-me muito para não ceder a um acesso de choro que ameaçava dominar-me em pleno restaurante, onde havia gente conhecida em todas as mesas ao redor. Buscando não dar muito na vista, eu tentava ocultar meu rosto com as mãos, apesar de claramente intuir que aquele era um recurso de pouca valia para os meus fins, mas era o único ao meu alcance. O presidente notou a minha dificuldade, nada de desespero e angústia, disse-me ele e continuou, guarde suas lágrimas para depois, agora faça-me um favor, experimente os meus óculos, ele falou isso e estendeu-me suas lentes espelhadas.

Durante a viagem de helicóptero eu admirava a paisagem sem necessidade da câmera de vídeo, eu via as árvores e mesmo aquelas cores do mar que só se produzem em virtude da vida nele existente, sob a água límpida até cardumes eu podia ver, tudo graças aos óculos. Durante aquele almoço no restaurante, no momento em que coloquei aquelas lentes, se antes eu procurava esconder a angústia de minha expressão, depois eu me esforçava para não parecer um idiota de tanto maravilhamento que me acometia. O presidente da companhia divertia-se com a minha estupefação, viu só, você não tem por que perder a esperança, disse-me ele. Eu podia ver tudo com aqueles óculos, as plantas, os garçons, tudo que havia de vivo no ambiente. Aquele era um dos restaurantes mais caros da cidade, sua clientela consistia praticamente só em bem sucedidos, em gente que eu já via sem necessidade de auxílio, a maioria da qual usava os óculos espelhados. Pois bem, essa gente, os de sucesso, que eu via nitidamente e em cores a olho nu, aparecia-me em preto-e-branco quando eu estava com os óculos espelhados, enquanto tudo mais se mostrava em belas cores. O presidente da companhia não soube explicar-me por que isso acontecia, simplesmente acontecia, e no fim das contas era algo útil, disse-me, pois permitia-nos distinguir nossos semelhantes, segundo ele fora assim que eu começara a ser reconhecido pelos espelhados, ao tornar-me preto-e-branco quando visto através dos óculos. Nosso almoço acabou e o presidente pediu-me seus óculos de volta, senti-me tentado a adotar uma atitude infantil recusando-me a devolvê-los, perguntei-lhe como eu poderia obter um par daquelas lentes para mim, no próximo fim-de-semana vou levá-lo para um passeio, respondeu-me o presidente, prepare bagagem para passar uma quinzena na praia e não deixe de comparecer, ele completou.

Durante o vôo de helicóptero, o presidente da companhia novamente deixou-me usar seus óculos enquanto ele cochilava em sua poltrona. A ilha, sob a aparência de um requintado resort, ocultava uma espécie de centro de treinamento secreto, mantido constantemente sob cerrada vigilância. A ilha propriamente dita não era um lugar nada secreto, pelo contrário, para efeitos públicos ali funcionava um centro de lazer exclusivíssimo, do qual muito se falava nas colunas sociais, contando-se com alarde quem, dos ricos e famosos, estava entrando e saindo de lá. O acesso à ilha só era franqueado aos espelhados e aos novatos que eles apresentassem, como no meu caso. Os serviçais, faxineiros, garçons, cozinheiros, tinham todos os seus movimentos monitorados e eram terminantemente impedidos de entrar no centro de treinamento, que ficava no subsolo, ou mesmo de saber o que lá acontecia, naquela área tudo tinha que ser feito somente por nós, que compartilhávamos o segredo dos óculos espelhados. Enquanto lá em cima se bebia, nadava e de tudo se fazia para merecer um comentário nas colunas de fatuidades, lá embaixo ministravam-se ensinamentos para uma nova raça humana.

O presidente da companhia passou aquele primeiro dia todo comigo, só partindo ao anoitecer, depois disso fiquei entregue aos instrutores do centro de treinamento. Ele, o presidente, apresentou-me a várias das pessoas que se encontravam na ilha, algumas eu já conhecia pessoalmente, outras me eram familiares por sempre estarem em evidência nos meios de comunicação, políticos, estavam lá inclusive um ministro de estado e um governador, grandes empresários, publicitários, médicos e juristas de alto gabarito, artistas de grande vendagem, especuladores do mercado financeiro, comunicadores da televisão, desportistas milionários, eram homens e mulheres das mais sortidas origens e atividades, havia mesmo um pregador evangélico muito notório, que vivia enfatizando a importância do dízimo nas suas aparições em rede nacional, aliás, já havia algum tempo que o próprio papa só era visto com os olhos ocultos por trás daqueles óculos espelhados. O que toda essa gente tinha em comum, além de riqueza e poder, era o fato de haverem todos perdido a visão dos seres vivos, assim como eu, eles só podiam enxergar as coisas inanimadas e os que sofriam da sua mesma deficiência. Lá também estava um dos médicos que consultei quando minha visão começou a se alterar, um neurologista muito prestigiado que, como seus outros colegas que procurei naquela época, causou-me estranheza justamente por usar uns óculos tão excêntricos, nós o observávamos desde o começo, disse-me o neurologista, desde quando você começou a consultar médicos, disse-me ele ainda, o seu comportamento era característico de um biotiflótico novato, disse-me também o tal doutor dos nervos. Biotiflose era como chamavam a moléstia, palavra composta do grego para designar a cegueira, tiflose, à vida, bio. O neurologista contou-me que todos os acometidos do mal ficavam mais ou menos do jeito que eu fiquei, inseguros de seus movimento, ansiosos, apreensivos, reticentes, pensando, não sem razão, serem os únicos a sofrerem daquilo, em suma, duvidosos da própria sanidade. Todos os biotiflóticos eram pessoas com posições a zelar, por isso que se sentiam tão ameaçados ao serem vitimados por aquela deficiência, por isso também o segredo com que se encobria o mal, pois pela primeira vez se descobria uma doença cuja fonte, tudo indicava, estava diretamente relacionada à riqueza e ao poder, ninguém ainda sabia como isso acontecia, mas já não sobrava muito espaço para dúvidas na cabeça dos pesquisadores, aquela era uma doença dos abastados causada por sua abastança, e não seria nada bom que as camadas inferiores da sociedade viessem a saber disso. Daí o motivo de tanto mistério em torno do assunto, e quando, apesar de todo o segredo, alguma informação vazava, os órgãos de informação tratavam de, em vez de tão-somente desmenti-la, envolvê-la numa teia de boatos, indagações, afirmações, negativas e teorias mil, de modo a minar-lhe todo crédito, dando ao assunto uma conotação de sexo dos anjos.

As duas semanas na ilha foram divertidas e proveitosas, passeios de veleiro, amistosas competições de jet-ski, excursões subaquáticas, pachorrentos vagares ao pé da piscina, fantásticas refeições, sexo selvagem com direito a pedofilia, sadismo, drogas estimulantes em variedade, serviço seis estrelas. Em meio a essas amenidades, ministravam-nos instrução e treinamento sobre a nossa nova condição. Havia, entre os presentes, os que, como eu, realizavam sua primeira estada na ilha para receberem os rudimentos da iniciação, e havia também os já iniciados, que retornavam tanto para apenas passarem uns agradáveis dias de descanso quanto para fazerem cursos avançados sobre novos modos de viver e sobre técnicas mais complexas de uso dos óculos espelhados.

Aqueles óculos eram complexos instrumentos de alta tecnologia, suas lentes, na verdade dois visores digitais, convertiam as imagens exteriores para diversos modos de leitura, infravermelho, térmico, monocromático e muitos mais, sempre com a singularidade de que nós, os biotiflóticos, aparecíamos diferentes dos demais seres qualquer que fosse a variante, como no modo de visão normal, em que surgíamos em preto-e-branco. Isso só se observava no uso dos óculos, já que na televisão e em outras formas de transmissão de imagens os espelhados nos mostrávamos iguais aos outros seres, um mistério. Além disso, os óculos espelhados também podiam receber correios eletrônicos, fornecer cotações de bolsas e prestar diversas outras informações, boletim climático, hora mundial, atividade sísmica, qualidade do ar, alarme a distância, ritmo cardíaco, pressão sanguínea, cadastros dos serviços de proteção ao crédito e mais uma infinidade de coisas. O controle de tantas funções fazia-se por toques em regiões sensíveis das hastes e o aprendizado de seu manuseio podia estender-se por anos, aquelas duas semanas iniciais serviam apenas para uma instrução básica a fim de readquirirmos a visão normal do mundo, as outras utilidades podiam-se descobrir por conta própria ou pelo aprendizado dirigido nos centros de instrução.

A biotiflose de início recebeu o nome de mal do FMI porque foi na sede do fundo que os primeiros casos surgiram. De Washington a doença se propagou para Wall Street e daí alastrou-se entre os ricos do mundo. Ninguém sabia o que a causava, se bactérias, vírus ou elementos químicos, os biotiflóticos não manifestavam qualquer alteração orgânica que justificasse a perda da visão, já se haviam gasto trilhões em pesquisas exaustivas e nada se descobrira de diferente entre um biotiflótico e um indivíduo normal, exceto a visão. No entanto, cedo os cientistas que se dedicavam àquelas dispendiosas e secretíssimas pesquisas, também eles biotiflóticos, perceberam que imagens captadas indiretamente, fosse em filme ou em meio eletrônico, não ocultavam a vida a seus olhos deficientes, e por conseguinte concentraram esforços na criação de instrumentos capazes de restituir a visão normal, cujo resultado foram os óculos espelhados. Criaram-se centros de treinamento em certos pontos do planeta, sempre em lugares paradisíacos, fosse na praia ou na montanha, todos acobertados pela fachada de requintados e exclusivos hotéis de lazer, onde os biotiflóticos se reabilitavam pelo uso dos óculos, além de se informarem sobre sua doença e o que se estava fazendo para melhor entendê-la.

Já passaram alguns anos desde esses acontecimentos. Assim que voltei da ilha, minha vida recuperou seu eixo, retomei o trabalho com um ânimo enorme e, com a saída do presidente da minha empresa, promovido ao comando da holding do grupo, agora ocupo o seu lugar por indicação dele próprio. Voltei várias vezes à ilha para aperfeiçoamentos, também já estive em dois outros centros de treinamento no exterior, na Suíça e no Taiti, e tanto me desenvolvi no uso dos óculos que já posso ministrar treinamento para algumas de suas funções mais importantes. Os óculos, por sua vez, também foram bastante aprimorados, deixaram de ser grandes e pesados, e suas lentes, graças a uma nova função, podem assumir várias cores, segundo o gosto do usuário, podem inclusive ficar transparentes, como as de quaisquer óculos comuns de grau. Quanto aos conhecimentos sobre a biotiflose propriamente dita, sua natureza e suas causas, nada se avançou desde aquela época, só os ricos continuam sendo suas vítimas e as pesquisas já se dirigem até para o campo da paranormalidade, tamanho o desnorteio dos doutores. Hoje em dia sabe-se, porém, que um biotiflótico, quando perde sua riqueza e seu poder, morre, o que elevou a competitividade do mercado a níveis nunca antes registrados, uma autêntica disputa canibalesca pelo monopólio econômico. Também correm boatos a respeito de biotiflóticos que, contrariando o bom senso, renunciaram às suas posições e foram viver vidas comuns, assim recuperando a visão normal, mas isso já são boatos que ninguém confirma. Na dúvida, preferimos todos continuar matando para não morrer.

Minha namorada continuou-me invisível e cada vez entendíamos menos um o que o outro falava. Nosso distanciamento foi se operando de modo gradual, por assim dizer natural, até que um dia ela encontrou a mim e a uma colega espelhada em situação algo comprometedora, nus na hidromassagem do meu apartamento. Não houve choro nem esperneio, minha namorada saiu e voltou mais tarde, quando eu já estava só. Ela me disse então estar cansada daquela vida, de mim, de meu anseio patológico de ascender socialmente, como também de seu trabalho, embora ela ganhasse os tubos como consultora de moda, da competição profissional desenfreada, e ainda de sua família, entre cujos integrantes contavam-se vários banqueiros e financistas de prestígio. Cada vez tenho mais a impressão de que ninguém me vê nem me ouve, ela me disse, todos com esses óculos espelhados horríveis, vivendo como se não existisse mais ninguém no mundo, completou sem imaginar o quanto de verdade havia em suas palavras. Disseram-me que atualmente ela mora num sítio no interior e pratica o cultivo de utopias.

Aquela pracinha miserável que ficava perto do estacionamento não existe mais, agora, em seu lugar, há um pequeno, luxuoso e lucrativo mall construído e administrado por uma sociedade em que tenho participação majoritária. Isso mudou completamente o perfil daquela área, claro, para melhor.

Por uma questão de conforto continuo tendo um motorista a meu serviço. Às vezes, no entanto, saio sozinho para passear de carro sem itinerário certo. Dirijo a esmo e muitas vezes acabo diante de um desses pontos de encontro de miseráveis, terrenos baldios, logradouros esquecidos. Então olho para aquela gente, velhos, adolescentes, crianças, e sinceramente não sei o que os faz quererem umas vidas tão bestas.

11.12.2

2 comentários:

olhodopombo disse...

tambem gosto do filme
feios, sujos e malvados....

olhodopombo disse...

voce precisa publicar isto em LIVRO....